26 de abril de 2016

A gaveta escondida #7: "JOANA E O ANJO"

O ciclo dos contos que me lembro de ter escrito antes de 1996 (ano que representa, não sei bem por quê, uma espécie de viragem) encerra-se com “Joana e o Anjo”. Outros contos como “A melodia de Orfeu” viriam numa segunda fase de escrita, mais amadurecida (?!), a que poderei vir a chamar, quem sabe, “A gaveta do meio”.
“Joana e o Anjo” foi sempre uma espécie de emblema. Corresponderá ao meu pacto com o Anjo (ou o Diabo?); o momento em que senti que viesse o que viesse, lutos, doenças, fracassos, desilusões, conseguiria sempre aguentar-me… graças à escrita. Não caiam na tentação de me verem na Joana (tenho algo de Catarina, bastante de Francisco e qualquer coisa do Anjo-Diabo). Mas, ao contrário do que sugere o narrador, não vos impeço de lerem esta história como uma parábola…

JOANA E O ANJO

No momento em que Joana atravessou a porta do café e se sentou à mesa do canto, instalando-se para sempre na minha vida, ainda ninguém sabia o que se ia passar. Nem ela, com os olhos e os livros pousados desencantadamente em cima do tampo embaciado, nem eu, disfarçado de homem comum a beber uma cerveja, nem a força superior que nos comanda não sei como.
Antes de começar a contar a história de Joana, devo dizer que esta não é uma história sobre a escrita, nem sobre os escritores, mas só sobre Joana. Joana, a rapariguinha de olhos negros e cabelos lisos sentada ali ao canto, menos rapariguinha na idade do que no aspecto frágil, mas enorme na sua presença e na sua beleza, sem o saber. Joana conquistou o direito a este encontro por não o ter esperado, por não o ter desejado, por não ter feito nada para que ele acontecesse, a não ser escrever e existir. Dolorosamente. Joana escrevia vivendo e vivia escrevendo, passe o lugar comum, sem por isso pretender parecer-se com nenhum dos escritores geniais, incompletos, inseguros, que tinha estudado ao longo de anos na escola e agora moravam nas suas estantes.
Joana escrevia contos, que eram no fundo histórias pequenas, histórias que não aborreciam, histórias de quem não quer incomodar. Contos perfeitos, seguros, claros, quase sempre tristes, ideais como a beleza que ela perseguia, uma beleza discreta e firme, que mal se visse mas se soubesse que estava lá. Mas, durante muito tempo, as histórias de Joana não foram um fim, mas simplesmente um meio, um modo de enfrentar os dias que se sucediam, e tudo o que nos dias se sucedia, sempre igual, e ao mesmo tempo um modo de corrigir o que nela era diferente dos outros e de perseguir o que era normal.
Quando Joana terminava um conto, quando acabava de escrever algo de bom, era como se alguém lhe desse um beijo por dentro, um beijo que a reconhecesse e a recompensasse toda. E quando alguém casualmente, porque Joana evitava mostrar o que escrevia a alguém, apreciava os seus contos e revelava admiração, Joana por momentos confundia essa emoção despertada nos outros com esse conhecimento grande que só ela mesma tinha da grandeza do seu sofrimento e sentia-se feliz por não estar sozinha. Mas em breve a ilusão se desfazia, à medida que os outros tentavam comentar as linhas que liam e ela ia vendo o quanto se afastavam dela e uma nova camada de tristeza cobria os seus olhos escuros.
E não se espantem se chamo de sofrimento o trabalho de escrita de Joana, porque de sofrimento se tratava, de ferida e de dor. Joana sabia dessas linhas arrancadas a choro ou arrancadas ao choro, linhas que lhe escorriam da mão esguia com um estranho misto de força e suavidade, como costumam escorrer, fortes e suaves, os cabelos lisos das mulheres bonitas, e se estendiam sobre o papel áspero, como corpos delicados sobre a areia da praia. Tantas páginas a tinham salvado de tantos desgostos, de tantas provações... Do suicídio não, porque Joana tinha medo do suicídio, não da irreversibilidade da morte, mas da irreversibilidade do gesto em si. Teria pensado em suicidar-se, algumas vezes, porque suicidar-se seria bem mais fácil do que procurar a redenção no caderno e no lápis, estaria à distância da janela mais próxima ou da rua apinhada de carros, e buscar a salvação na escrita custava bem mais, de esforço, coragem, virtude. Ter-se-ia suicidado, se fosse possível prever a posição do seu cadáver, a expressão do seu rosto. Não as podendo prever, nem calcular, nem preparar, receava antes de mais o ridículo, os olhares incómodos, os comentários distorcidos, a incompreensão.
Através dos seus contos, Joana apropriava-se da beleza, da riqueza e do amor. Todos os gestos claros e doces de todas as mulheres belas, ricas e amadas percorriam e sublimavam o seu corpo, transportado à grandeza do impossível. Todas as emoções boas e sãs de todos os vencedores desta vida lhe entravam e saíam pelos poros à mistura com o suor. Era tão intenso o prazer quando a personagem amava, que Joana tinha de morder os lábios para não gritar ou não desatar a partir coisas... Era tão forte o orgulho quando o herói vencia que Joana prendia as próprias mãos à mesa para não saltar...
De uma forma ou de outra, ia celebrando todos os de quem gostava, assassinando sucessivamente todos os que lhe faziam mal. Apareciam com um nome falso, a aparência mudada, às vezes reuniam-se dois ou três numa personagem só, mas Joana não se perdia e sabia com quem contava. Acabavam sempre por se afundar nas linhas que desfiava, numa rede estreita e interminável, agonizavam perdidamente no remate de cada história, sob o veneno, a facada, a ferida secreta, a doença sem cura.
Foi assim que Joana conquistou uma eterna expressão de candura, de desprendimento das pequenas iras quotidianas, de alheamento das coisas que normalmente vos preenchem a vida, que alguns, como a sua mãe, confundiam com a indiferença, e outros, como a sua irmã, com a tranquilidade. Só Joana sabia que, por detrás da sua força serena, habitava uma sensação morna de sono e de desilusão. Essa sensação frequente de que já correra todos os caminhos suavizava-lhe o rosto sério, mas menos por obra da coragem do que duma inteligente resignação. Acontecia Catarina reparar nela nessas alturas. Encontrava-a à varanda, encostada ao peitoril largo, a mão pousada sob o queixo, o olhar que só a quem não a conhecesse pareceria perdido ao longe, mas realmente afundado, abandonado por dentro, submerso por um estranho brilho de luz, uma luz estranha que parecia roubada, roubada às cores de fora, às arestas das casas, aos olhos dos outros, à chuva e ao calor. Joana era realmente bela nessas alturas, mas não sabia, porque a sua consciência andava longe, ainda que andasse por dentro de si mesma, e mais ninguém sabia, porque ninguém estava lá. Só nos olhos de Catarina Joana conseguia às vezes surpreender a imagem da sua beleza, e embevecer-se com ela, e encher-se de esperança, e amar muito a sua irmã, mas o encanto durava alguns segundos, e depois Joana percebia que o que via no olhar da irmã era mentira, uma mentira bonita, mas mentira, como as mentiras daqueles que liam o que ela escrevia, e então perdia quase tudo, a alegria, a comoção, a esperança, só sobrava o amor real, terno, doce e superior a tudo, que sentia pela sua linda, frágil e meiga irmã. Joana desconhecia a inveja e o ciúme, porque a inveja e o ciúme pressupõem o desejo de ter para si o que se vê ser possuído pelos outros. Joana sabia que a sua felicidade não estava nas mãos de ninguém porque não existia, ou ainda não existia, e se viesse a existir não dependeria de ninguém, nem sequer dela, só de um milagre de Deus.
Uma das coisas que entristeciam Joana era a forma visível como o seu rosto facilmente se cansava. Sem que Joana fosse cardíaca, ou hipertensa, ou asmática, ou sofresse de qualquer outra doença, o certo é que uma tarde de calor, uma hora de marcha, uma viagem de autocarro, bastavam para lhe embaciar o olhar, lhe empoeirar a expressão e lhe carregar os traços. No fim de um dia de aulas e de afazeres, quando, por exemplo, chovia, e a pasta, o guarda-chuva, a roupa grossa, os membros exaustos, tudo pesava e incomodava, Joana conhecia por instantes uma rara revolta e apetecia-lhe gritar.
No entanto, Joana suportaria facilmente aquilo que considerava uma quase fealdade e uma ausência de graciosidade, se não fosse a solidão. Joana vivia com pai, mãe, irmã, tinha primos, vizinhos, colegas e até amigos, mas sofria de uma irremediável solidão. Joana não era um bicho do mato, como vocês costumam dizer, sabia sorrir numa festa, ser educada com as pessoas de idade, acarinhar as crianças, dizer piadas aos rapazes. Mas era como se os sorrisos e as vozes e os gestos ao desprenderem-se dela levassem sempre consigo um pedaço da sua solidão, o que os tornava deslocados, falsos, obsoletos, contaminados por aquilo que Joana achava ser uma doença triste e era afinal uma grande força interior.
Mas Joana não se rendia e perguntava. Onde está a felicidade, onde está a minha felicidade, perguntava-se muitas vezes Joana. Dir-me-ão que este é o género de perguntas que fazemos a nós mesmos, quando somos jovens ou estamos no fim da vida, quando passamos os dias a olhar para os lados, a procurar nos rostos que se cruzam com o nosso na rua uma resposta, um gesto, uma solução, ou quando começamos a olhar para trás, e percebemos que os gestos e as respostas estavam lá e não as vimos. Joana perguntava-se se iria acabar assim, encolhida sobre as suas memórias, a pensar que a solução tinha ficado ali. Quem sabe se aquelas calças gastas, em que ela então não gostava de se ver, quem sabe se a contemplação futura dos restos ou a simples lembrança das suas calças gastas, que a apertavam, a incomodavam, a faziam gorda, não iriam mais tarde fazê-la chorar de lembrança. Quem sabe se não sentiria saudade do seu rosto carregado, sisudo, cansado, sempre fechado aos outros, sempre tão pouco bonito. Ou quem sabe se a felicidade não estaria nos contos que escrevia, nessas páginas amargas que a salvavam.
Um dia, Joana conheceu Francisco, que era um rapaz amável, inteligente e um pouco sedutor. Não sei se Francisco vislumbrou em Joana aquilo que estava para além da aparência, a imensa beleza, a imensa força, talvez até, possivelmente, a solidão. Não sou eu quem tem o dom da omnisciência. Sei que Joana nunca vislumbrou nele a sua felicidade ou a sua salvação. Sabia que aquele rapaz estava casualmente apaixonado pelos seus olhos verdes, ou pelo seu sorriso, ou pelas suas mãos, ou por qualquer outra coisa que viera à superfície, mas que Joana sabia não ser a verdade sobre si mesma. Mas enquanto Joana esteve ao lado de Francisco tiveram uma vez uma conversa, não essencial para esta história, mas que eu gostaria de contar.
- Quando eu nasci, o meu nome esteve para ser outro, porque a madrinha devia ser uma amiga da minha mãe, que se chamava Isabel. Mas morreu de repente, num acidente, e ninguém me quis dar o nome, acho que por causa do mau agouro.
- Isabel. Também gosto. Ias ter nome de rainha santa.
- Assim, tenho nome de princesa santa.
E Joana resumiu a história da bela princesa portuguesa, filha do rei D. Afonso V, que quisera seguir a vida religiosa, impelida por um grande amor a Deus, mas vira a vocação contrariada pelo dever de estado, e contou como ela vivera sempre aquém dos seus desejos, impedida de professar, mas recusando todos os pretendentes, multiplicando-se em obras de caridade, mas incapaz de realizar a obra que tivera sempre em mente.
Se me lembrei de transcrever esta curta conversa, entre tantas outras que Joana teve com Francisco, foi só porque sei que Joana atribuía à mudança atribulada do seu nome o significado de uma falsa partida, daquelas que enervam o atleta e condicionam a sua prestação na prova. Joana achava que tinham acabado por lhe dar um nome meigo, de princesa beata, como que para compensar esta primeira orfandade, a morte da madrinha que não chegou a ser, e sublimar a sua falta de graça, que, logo em recém-nascida, Joana achava que devia ter sido visível. Como se houvesse sublimação possível...
Pouco depois, Joana e Francisco separaram-se. Joana não sofreu muito, sabia que o seu caminho não era aquele, o seu caminho não existia, pelo menos fora de si. Foi então que marquei encontro com Joana, por acharmos todos que tinha chegado a hora. O nosso encontro foi num daqueles dias em que se conta com o inexplicável, em que alguma coisa no ar, nos ruídos da rua, nos gestos dos transeuntes, nos parece avisar que a qualquer momento a chuva pode vir estragar o belo dia de verão ou o calor render subitamente a tempestade. A primeira pergunta que Joana me fez, assim que me aproximei dela, quase me fez sorrir.
- És o diabo?
- Bem sabes quem eu sou. As maiores tentações nesta vida vêm-nos de Deus.
- Que queres de mim?
- Sou o anjo da guarda que a tua escrita engendrou. Venho mostrar-te o que podes ter. Podes ter tudo. Podes ser tudo. Não podes ser igual aos outros. O caminho que te vou mostrar é o mais real de todos. Com as Catarinas e os Franciscos deste mundo podes conhecer muitas felicidades, muitos desgostos. Eles são reais como a chuva, completos como o calor. Comigo podes conhecer a felicidade e o desgosto supremos, a extrema crueldade de existir. Não podes andar para aí a escolher o fim das histórias que escreves, à espera que venham remediar o que está mal. Não podes esperar que cada fim seja um remate e aumente a segurança com que caminhas sobre o chão. Saberás ver para além das sombras, das arestas das coisas, e verás o que muito pouca gente vê. Saberás que a cor vermelha do casaco daquela senhora irá desbotar com o tempo, que aquele par de namorados ao canto se irá separar amanhã. Com o que sabes podes fazer tudo, tingir o casaco dela da cor dos sonhos deles, emprestar aos beijos dos dois o vermelho da paixão. Mas não podes esperar que as cores e os sonhos permaneçam, porque tudo é instável no mundo da criação. O caminho que te mostro é o caminho da criação. Nem sempre se pode criar o que se deseja. Mas o que se cria ultrapassa tudo…
Talvez a história de Joana não tenha acabado como gostariam, ou talvez achem que não acabou. Poucos de vocês ainda aceitam a realidade das coisas, que muitas vezes vos parece fluida e irreal. Mas esta é a história de Joana, e eu não vos prometera outra coisa. Não vos vou dizer quantos anos ela tem agora, nem se está casada, com filhos, solteira ou viúva, se é uma escritora famosa ou uma filósofa recolhida. As histórias simples são as das pessoas simples, como Catarina e Francisco, que, esses sim, casaram - um com o outro. As respostas que vão surgindo levantam sempre mais questões. Talvez por isso os poetas escrevam tanto, à procura quase nunca das respostas definitivas, mas do anjo da guarda que eles não têm a certeza de poder vir a ter, porque eu disse-vos que esta história não é uma parábola.

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